open health, saúde digital, TI em Saúde, transformação de negócios

Open health x open banking: por que essa comparação pode afundar as expectativas?

Há quem defenda a urgência de a Saúde adotar práticas de compartilhamentos de dados, tal como no open banking. Mas o setor é, literalmente, vital, e exige maiores cuidados

por Aldir Rocha

O advento do open banking tem gerado uma empolgação notável (alguns diriam desmedida), a ponto de analistas sugerirem que o princípio de compartilhamento de dados seja aplicado, igualmente, em outros setores. Na Saúde, que talvez seja a candidata favorita a navegar nas águas abertas do mundo dos dados, o conceito não é novo, só tem outro nome mais comum: interoperabilidade. A diferença, contudo, não acaba na terminologia.

Entre o “open bank” e o “open health”, há um oceano inteiro de distância. Mas, antes de explicar o porquê, preciso fazer uma recapitulação.

O recurso mais valioso do mundo

Em 2006, o matemático londrino Clive Humby cravou que os “os dados são o novo petróleo”, mas foi uma década depois, em 2017, após a publicação de um report do The Economist intitulado “O recurso mais valioso do mundo”, que a expressão ganhou projeção.

Todos sabemos que petróleo bruto não é consumível sem antes passar pelo processo de refino, que consiste, basicamente, nas etapas de separação, conversão e tratamento. Aqui, a comparação continua razoável: além de valerem muito, os dados requerem o mesmo “refino” antes do consumo.

Diferentemente do petróleo, o consumo dos dados se dá por meio do compartilhamento com os vários agentes da cadeia de cada indústria, que se beneficiam do uso desses recursos e, ainda, adicionam valor ao que usufruem. Assim, o ciclo se renova, fortalecendo os processos de refino e – o mais importante – transformando os dados abertos em um elo em si da cadeia de valor.

Segundo o Social Good Brasil, organização sem fins lucrativos associada à ONU, estima-se que em 2021 tenham sido gerados 35 trilhões de gigabytes de informação. Essa abundância de dados levantou dilemas éticos quanto a uso, interpretação, anonimização e compartilhamento desses dados, e quais os limites para sua utilização.

Segundo ato: em nome da lei

Todo recurso valioso, quando explorado, gera a necessidade de regulamentação. E foi com o advento da LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados, que conceitos como “titular”, “controlador” e “operador de dados” passaram a frequentar o vocabulário empresarial. A incorporação da proteção de dados à Constituição Federal no rol de direitos e garantias fundamentais eleva a importância da atividade: mais que uma questão legal, a exploração dos dados passa a ter presença constitucional.

Então, problema resolvido? Em termos práticos, não. A questão é: até que ponto o aparato legal e constitucional acompanha, de fato, a evolução da qualidade dos dados que as empresas produzem e consomem, considerando a maturidade do ecossistema envolvido e a complexidade de cada indústria quanto ao refino e ao compartilhamento de dados?

Por que algumas indústrias, como a bancária, evoluem mais rápido que outras e abrem seus dados?

Open banking X open health

Segundo o site do Banco Central, o open banking diz respeito ao compartilhamento de informações financeiras entre diferentes instituições. Se o portador dos dados assim autorizar, ele pode ter a movimentação de suas contas bancárias a partir de diferentes plataformas, e não apenas pelo aplicativo ou site do banco, isso de maneira segura, ágil e conveniente. A interoperabilidade dentro do ecossistema inaugura um capítulo na tecnologia bancária e o protagonismo do titular ganha força: “monte seu próprio banco”, diz o site do Bacen.

Com vistas a impulsionar esse avanço na Saúde, o open banking tem aparecido, não raro de forma associativa, nas discussões sobre o setor. Mas, embora o princípio do compartilhamento de informações entre instituições dos respectivos segmentos seja o pilar desse movimento, algumas diferenças explicam as dificuldades da analogia entre open banking e open health. Vamos aos principais:

  1. A indústria bancária é mais resolvida. Na verdade, a indústria bancária brasileira é reconhecidamente uma das mais sofisticadas do mundo, com elevado grau de maturidade. No caso da Saúde, o sistema suplementar ao SUS estimula a sobreposição de recursos e acirra a concorrência, desestimulando o compartilhamento de dados clínicos entre as instituições do segmento e resignando a troca de informações ao âmbito financeiro.
  2. Os dados de Saúde são mais complexos e sensíveis. Não que os dados compartilhados pelo open banking não tenham sensibilidade. A questão é que dados clínicos são de sensibilidade vital – no sentido lato – e precisam garantir qualidade ontológica, ou seja, compatível com a investigação científica da natureza da realidade e da existência. Essas informações precisam, ainda, acompanhar o contexto em que foram criadas para que sejam compartilhadas entre os vários sistemas em funcionamento em hospitais, laboratórios, clínicas e operadoras, de forma que assegure confiabilidade e segurança para corpo clínico e pacientes.
  3. O open health requer uma liderança com legitimidade. Para navegar nos sistemas público e privado de Saúde e mediar conflitos de interesses dos vários elos da cadeia, é preciso constituir uma liderança com alta representatividade, que posicione a interoperabilidade de dados clínicos como peça fundamental para o fortalecimento do sistema de Saúde como um todo.

Open health: compartilhar para expandir

Ainda no site do Banco Central, observam-se alguns benefícios a partir do open banking: novos modelos de negócio, inclusão de segmentos desassistidos, maior transparência, portabilidade de relacionamento entre instituições, controle sobre suas finanças e consumidor no centro.

Sabemos que o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) significou um marco para o setor bancário na construção da sustentabilidade digital que, atualmente, proporciona segurança e confiabilidade a todo o sistema financeiro. Hoje, essa referência abre espaço para inovações semelhantes. E a necessidade de buscar saídas para a cultura inflacionária e fortalecer os controles para garantir liquidez tornaram a sustentabilidade do setor um assunto de Estado.

É justamente essa legitimidade e força que a Saúde demanda.

Embora um projeto federal consistente de open health já esteja em curso no Brasil – a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) –, a iniciativa precisa adquirir notoriedade e ocupar a agenda estratégica não só do Ministério da Saúde, mas ares de transformação do sistema, sendo um novo eixo de crescimento e expansão do acesso, da mesma forma que ocorreu no setor bancário.

Para isso, o uso da tecnologia como plataforma de inteligência exigirá estímulos para vencer o corporativismo, bem como uma rediscussão de papéis e responsabilidades dos atores da cadeia, com o objetivo de estabelecer um novo arranjo que permita alavancar a Saúde Digital.

Tomemos como exemplo a indústria de software na Saúde: se ela não receber incentivos para realizar as modificações necessárias em seus sistemas, ela não o fará. Se incentivos não bastarem, que seja compulsório. Muitas das soluções ainda são a herança de um modelo baseado na doença e, portanto, centrado no fee-for-service.

A Saúde Digital pode ser, de fato, um marco de transformação social em um país continental como o nosso. O projeto Conecte SUS já é um impulso significativo para provocar essas mudanças. A RNDS, que reconhece a variabilidade de sistemas de prontuários eletrônicos de mercado como vicinais importantes nessa infovia, pode viabilizar uma Saúde conectada, com dados padronizados e interoperáveis. E esse será um forte tracionador para a integração das medicinas pública e privada.

Terá sido, ao final dessa jornada (se é que podemos idealizar um fim para ela), uma conquista colaborativa, tendo o paciente no centro. Afinal, padronizar e compartilhar dados clínicos significa prover inteligência analítica a todo o sistema para uma melhor gestão populacional e promoção da Saúde para milhões de brasileiros. Este, sim, é um motivo para nos empolgar.

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Aldir Rocha

Sócio-consultor
Lidera equipes de TI há mais de 20 anos. Especialista em desenvolver diagnósticos e soluções eficazes com foco na geração de negócios para as empresas.
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