*Por Sergio Lozinsky
Dos três pilares que compõem o ESG, a governança (G) é a mais relevante, pois é ela que suporta e norteia as sustentabilidades ambiental (E) e social (S). Uma boa notícia é que ela está amadurecendo, com muitas empresas mostrando um elogiável grau de progresso em relação a esse tema. Porém, isso não quer dizer que os desafios estão todos solucionados ou que seu potencial está plenamente realizado.
O passo que deve ser priorizado é justamente um dos mais difíceis: garantir que a governança fomente uma cultura mais eficiente e eficaz. Isso não é simples justamente porque a cultura é algo arraigado ao DNA da empresa. Transformá-la é um processo inevitavelmente lento ou conflituoso, mas que precisa ser feito sempre que a visão de futuro indicar que algo mais interessante e mais nobre pode ser alcançado. Claro, é possível crescer sem governança, mas o custo disso pode ser alto, em termos materiais e imateriais.
Ter maior exposição ao mercado – ou seja, não ficar “confinado” na própria empresa – costuma ser uma boa oportunidade para mudar a cultura no sentido positivo, e, em uma situação dessas, a governança consegue criar um ambiente para discutir de forma mais aberta, e com menos restrições, as ideias que deram certo e as que não. Dessa discussão nascem os insights, argumentos e práticas que acabam por realizar uma transformação cultural.
Nesse sentido, existe uma história que se conta no mercado sobre o recém-falecido empresário Abílio Diniz: por algum tempo, ele defendia a ideia que um dos elementos essenciais da cultura de suas empresas tinha que ser o inconformismo, pois ninguém deveria estar satisfeito com a maneira como as coisas estavam sendo feitas. Era preciso ter sempre em mente que cada um poderia estar fazendo melhor. Anos depois, porém, ele mudou sua visão. Afirmava que não era possível ter uma organização só de inconformistas, pois a saúde da companhia também dependia de uma maioria executando muito bem aquilo que foi decidido. Para isso também serve a governança.
Para que a governança exerça esse papel, é preciso separá-la conceitualmente do compliance, ou seja, o cumprimento de certas regras e validações pré-estabelecidas para assegurar o poder decisão seja adequadamente distribuído, e o uso dos recursos da companhia monitorado . Não que seja comum confundi-los, mas é preciso ter claro que o compliance é uma forma natural de tentar interpretar a governança ou colocá-la em prática, sem necessariamente responder por toda a sua complexidade.
Na verdade, o compliance foi o gatilho que contribuiu para que as empresas levassem a governança mais a sério. A governança visa a qualidade das decisões, o compliance garante o controle de como está sendo decidido.
Nos últimos anos, testemunhamos diversas empresas passarem por crises que nasceram de má gestão financeira, de inabilidade nas relações com seus públicos, incapacidade de lidar com as mudanças sociais, entre outras razões. O compliance foi a ferramenta empregada para gerir essas crises internamente e, principalmente, evitar que novos episódios catastróficos acontecessem. E, enquanto elemento da governança, deve garantir que processos que movimentam valores relevantes tenham visibilidade.
Comecei minha carreira fazendo auditoria de sistemas. No processo, me cabia examinar compras, movimentações de estoque e quaisquer outras atividades que envolvessem dinheiro. A partir daí, uma das coisas que eu deveria verificar era quantas pessoas deveriam agir em concordância para obter lucro indevido no processo. Se fosse necessário um grande número de pessoas para tanto, especialmente de níveis hierárquicos diferentes, a chance de fraude era pequena. Porém, se fossem poucas, a probabilidade aumentava consideravelmente. Com essa linha de raciocínio, consegui identificar várias fraudes.
Embora isso tenha acontecido há muito tempo, a premissa não mudou: é preciso haver checagens, ou mesmo pós-checagens, para garantir que tudo que que tem valor para a empresa esteja sendo devidamente acompanhado, com indicadores que possam ser verificados e escrutinados. Porém, adotar esse tipo de conduta “de forma obsessiva” tem seus riscos, que não podem ser menosprezados.
Se uma empresa adota políticas como as descritas acima sem que elas estejam em consonância com o verdadeiro objetivo a ser perseguido – a melhoria do desempenho dos negócios – a governança fatalmente resulta em burocracia. E, como tal, acaba se tornando um limitador do crescimento: as pessoas avaliam se vale a pena apresentar uma ideia, por conta da “via crucis” que pela qual terão de passar para que a ideia possa ser apreciada, quanto mais aprovada. Por isso, ela precisa ser realista quanto ao contexto em que está inserida, fomentando uma cultura de “inconformismo saudável”, como provavelmente diria Abilio Diniz.
Ainda nesse contexto, mesmo em um cenário ideal, a governança pode representar um obstáculo para o lucro. Para que cresçam, empresas precisam de inovação, ou seja, testar não só novas ideias, mas também novas parcerias, formas de financiamento e condutas. Porém, muitas ideias boas e ousadas têm uma janela limitada de oportunidade para serem executadas com vantagem competitiva. Processos de governança – se impuserem uma burocracia além do necessário – inovações podem sacrificar essa janela, pondo tudo a perder. Não são poucos os casos no mercado de negócios fantásticos que foram criados por profissionais que se sentiam sufocados em suas corporações, e partiram para o voo solo.
Por isso, é importante cuidar para que a governança esteja alinhada em toda a esfera corporativa. Assim, sua influência será tão positiva quanto esse alinhamento. E isso só vai acontecer se o patrocinador dessa conduta for o nível hierárquico mais alto da empresa. Sem a crença deles de que a governança vai fazer diferença, ela acabará simplesmente “cumprindo tabela”.
No fim, o lugar da empresa no futuro será decidido a partir da forma como ela vivencia essa escolha. Afinal, a governança é um dos elementos capazes de garantir a perenização de uma organização, já que ela existe para que cada instância tome a melhor decisão possível, garantindo a continuidade de seus melhores preceitos e uma entrega real de valor para a sociedade. Se ela é esvaziada ou burocratizada, o lucro imediato pode até vir a aparecer, mas a erosão de sua essência e o dano social e ambiental são certos. Infelizmente, não faltam exemplos reais para comprovar essa afirmação.