No mundo corporativo, nem sempre o profissional desempenha a função que seu título sugere. Esse descompasso tem consequências sérias para os resultados da empresa
Por Ricardo Stucchi
Cargos e nomenclaturas nem sempre estão ligados à real função que o profissional deverá desempenhar na organização. Isso é antigo, e frequentemente interfere nas expectativas, nas cobranças e na designação das atribuições – chega a ser um dificultador até mesmo no processo de contratação. Apesar de os efeitos nocivos serem conhecidos, a situação é tão frequente quanto persistente.
As causas desse problema são múltiplas. Uma delas diz respeito ao tamanho da organização: quanto maior ela é, mais fácil associar funções a cargos de forma mais objetiva. Porém, quando estamos falando de empresas médias e pequenas, é mais comum encontrarmos acúmulo de funções sob um mesmo cargo – uma realidade corriqueira especialmente nas equipes de TI, onde vemos um profissional que exerce as funções de analista, arquiteto de sistema, gestor de projetos e suporte técnico, tudo sob o título de “coordenador de TI” ou até mesmo “analista sênior”.
A TI, aliás, também fornece exemplos bem claros para outra razão desse problema: a necessidade de afagar egos, exagerando uma suposta “importância” do profissional ou, pior ainda, seguindo uma tendência para atribuir um “cargo da moda” a um profissional menos gabaritado. É o que leva muitas companhias a chamarem o gerente de TI de CIO – mesmo que a empresa sequer comporte C-levels.
Embora o exemplo acima se refira à liderança, essa questão ocorre em todos os níveis. Muitos querem ter o cargo que está em voga, ou que parece revestido de maior status, seja no âmbito interno ou na sociedade como um todo. Só que esse desejo não está necessariamente vinculado ao padrão definido pelo mercado para aquela posição.
Muita estrela para pouca constelação
Em uma leitura resumida, podemos dizer que a atribuição de cargos está mais conectada a questões políticas, enquanto as funções a serem desempenhadas dizem respeito aos resultados almejados. É por isso que um bom recrutador, seja ele do RH ou do próprio time, dá mais valor às entregas e responsabilidades que a pessoa tinha em empregos anteriores do que ao cargo que ela diz que ocupou, e ainda menos ao que está na carteira de trabalho.
Porém, se todo o problema estivesse na hora de recrutar profissionais, sua solução seria mais simples. A coisa se complica quando analisamos essa situação no dia a dia. Se os limites e os deveres dos cargos e suas atribuições não estão claros, vários conflitos vão se instalar na relação entre as diferentes hierarquias.
Por exemplo: aquela pessoa que tem um cargo de menor status no ecossistema corporativo pode começar a negligenciar algumas de suas funções, porque, em seu entender, outra pessoa com um título mais pomposo é quem deveria ser o responsável.
Outro conflito frequente é a criação de cargos para acomodar algumas necessidades específicas. Ainda que nasça de boas intenções, essa prática leva a uma sobreposição de funções, que tem como efeito colateral uma situação de “muita estrela para pouca constelação”, como diz a canção de Raul Seixas. Isso aumenta as instâncias de aprovação, roubando a agilidade dos processos – e não raro, deixa espaços vazios, nos quais atribuições importantes ficam à deriva, sem ninguém oficialmente responsável.
Entregas contam mais que títulos
Quanto mais se proliferam os cargos mal atribuídos, maiores serão os custos e os esforços despendidos para dar conta da estrutura inflada e/ou esburacada que vai se instalar. Pior ainda: quanto mais o tempo passa sem que esse nó seja desfeito, mais emaranhado ele se torna, e a sua perpetuação acaba sendo incentivada por aqueles que querem manter seus privilégios.
Existe, ainda, um último aspecto nessa questão: os cargos que já nascem vazios. A cultura de startups teve seus pontos positivos, mas legou alguns vícios que se estenderam a boa parte do mercado, e um deles são os títulos abstratos que designam atribuições igualmente imprecisas.
É assim que nascem cadeiras pouco práticas, como “Chief Happiness Officer” ou “Mentor de Performance”, e até mesmo distorções que parecem saídas de uma paródia, como “Alquimista de Sonhos”, “Sherpa da Inovação”, “Profeta Digital” e outros. Para fins de esclarecimento: nenhum desses títulos foi inventado. Todos são cargos que figuram ou figuraram nas folhas de pagamento e cartões de visita corporativos de empresas reais.
Todas essas distorções são intrínsecas ao complexo equilíbrio de egos, aspirações e metas do universo corporativo. Isso não quer dizer que elas são totalmente inevitáveis. O primeiro e mais importante passo para resolvê-las é priorizar as entregas e responsabilidades, fazendo com que o ocupante do cargo saiba, inequivocamente, o que se espera dele, tenha ele o título que tiver.
Isso é algo que se consegue quando se resgata o conceito original de “ownership”. Traduzido incorretamente para o português como “mentalidade de dono”, essa palavra diz respeito à propriedade que se tem para o exercício de uma função. Ou seja, é preciso que o profissional seja o proprietário das entregas que ele tem que realizar, mesmo que ele tenha que vestir vários “chapéus” para fazê-lo.
Não quero dizer com isso que o ideal é que um profissional acumule várias responsabilidades, e sim que ele tenha bem claro para si o que ele deve fazer para realizar sua entrega com excelência. O título não o define: ao contrário, ele é definido por sua participação na concretização da estratégia e das metas da empresa.
Estabelecer isso como uma prática majoritária na empresa é um trabalho inglório, pois vai esbarrar em estruturas hierárquicas calcificadas e pôr egos à prova. Porém, são coisas que precisam ser discutidas. Se empresas existem para resolver problemas da sociedade, profissionais estão ali para resolver problemas da empresa. É preciso ter as pessoas certas nas posições certas. O nome que se dará a essa posição é uma questão de menor importância.
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