Fabio Ferreira
Contratos com um fornecedor de TI trazem desafios variados, mas a maior parte dos problemas concentra-se em uma questão específica: um gap entre o que está expresso no documento e a expectativa do resultado do trabalho.
Independentemente do serviço ou produto a ser adquirido ou contratado, é comum haver um descompasso entre a expectativa do serviço e o que a contratação direciona na prática e sua execução cotidiana. Tamanho é esse descompasso que ele costuma levar cliente e fornecedor a romperem depois de passado algum tempo do início das atividades, ou a carregarem descontentamentos durante toda a vigência do contrato.
Embora os SLAs (Service Level Agreements, ou Acordo de Nível de Serviço) não sejam nenhuma novidade, as reais expectativas raramente estão dimensionadas e discriminadas nos contratos. A maior parte dos documentos versa de forma clara sobre os aspectos legais, como cláusulas de rompimento, multas previstas, estabelecimento de penalidades e afins. São acordos muito formais perante a letra da lei, mas com pouca visão técnica. Isso acontece não só porque o departamento jurídico desconhece os conceitos técnicos, mas também porque a TI não domina os aspectos jurídicos.
Se não há entendimento entre essas duas áreas, elas deveriam recorrer a alguém com habilidades específicas para tanto, algo que não abunda no mercado. Mesmo escritórios de advocacia especializados em tecnologia não costumam ter uma visão completa e profunda da execução, restando poucas opções de assessoria ou consultoria. Independentemente de quem venha a ser esse intermediário, o ideal é que ele seja trazido à cena durante a elaboração do contrato, não depois.
Ainda assim, é possível recorrer a essa intermediação quando um contrato – de software, hardware ou serviços – começar a apresentar seus primeiros problemas. Porém, deixar para pedir ajuda externa depois que o trabalho está comprometido e as relações se azedaram está longe de ser uma estratégia recomendável – ainda que bastante frequente.
Para tornar essa discussão mais palpável, tomemos como exemplo um contrato de processamento de dados. Esse acordo hipotético está com tudo o que parece indispensável: o objeto da ação, como o serviço vai ser feito, a disponibilidade dos dados processados etc. Digamos que o documento traz até mesmo um SLA que determina que os dados precisam estar disponíveis 24/7.
Em tese, está tudo “certo”. Mas mesmo esse SLA que prevê 99,9% de disponibilidade não contempla a degradação desse processamento. Ou seja, os dados seguem disponíveis, mas o processamento acontece em uma velocidade muito inferior à desejada. O problema é que essa rapidez de desempenho jamais foi contratualmente especificada. Na execução, isso se traduz em um serviço disponível, mas lento. São nuances desse tipo que a tecnicidade deveria prever.
Outro exemplo: os contratos de fornecimento de TI raramente têm resiliência, ou seja, eles não preveem ARCs (Aumento de Recurso) ou RRC (Redução de Recurso). Ou seja, não preveem ajustes significativos. Por isso, é possível que alguns contratos de SaaS determinem um processamento por capacidade que leva em conta um elemento, como a quantidade de usuários, mas não determina o volume de dados a serem processados. Assim, se os usuários consumirem mais que o previsto, não há um dispositivo legal para se adequar a isso, e faz-se necessária uma nova conversa ou readequação.
Em outras palavras: a visão de um contrato não pode se limitar às observâncias jurídicas, precisando contemplar também as técnico-jurídicas. Por isso, TI e os responsáveis legais da empresa precisam estabelecer e estreitar vínculos.
Há ainda outros aspectos que precisam ser considerados nesse universo legal de fornecedores de TI. Quando falamos em contratos Body Shop, ou seja, aqueles em que um profissional especializado é contratado e alocado por tempo determinado para uma tarefa específica, há riscos a serem considerados. O maior deles é acabar colocando esse profissional em atividades estratégicas.
Um contrato Body Shop deve ser utilizado apenas para tarefas operacionais, e jamais para as estratégicas. Parece redundante propor tal cuidado, mas há empresas que não se atentam a isso. Mas como elas ficam quando esse profissional sai ou seu contrato se encerra? O resultado é uma perda estratégica e um vazio de gestão, além de possíveis complicações referentes à legislação trabalhista. Fora o óbvio: dentro do possível, um fornecedor não deve ter contato com segredos do negócio ou informações estratégicas.
Por todas as questões apresentadas até aqui, é correto afirmar que a definição de KPIs é responsabilidade da TI e das áreas do negócio que estão requisitando aquele serviço, mas o que quer que seja decidido por eles precisa ser alinhado também com a equipe jurídica. Já a gestão dos fornecedores cabe também à governança de TI, juntamente com as áreas contratantes e com a equipe de relacionamento e gestão de contratos do fornecedor. Essa coordenação conjunta demanda reuniões nos níveis operacional, tático e estratégico.
Nenhum desses três níveis pode ser deixado de lado. É comum que as empresas se concentrem apenas nos níveis operacionais e táticos, negligenciando o estratégico. Se o valor financeiro do contrato é baixo, as reuniões podem ser mais espaçadas. Se o valor é alto, e a operação é estratégica, elas precisam acontecer com frequência.
Como se vê, resolver as complexidades que permeiam um contrato de TI tem muito mais a ver com planejamento e exercício de uma governança sólida do que com questões pontuais do objeto do contrato. Portanto, é preciso repensar os fluxos e os processos da própria empresa, para que as áreas envolvidas tenham uma relação estreita e de boa comunicação.
Este artigo foi publicado originalmente no Channel 360o.
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