por Aldir Rocha
A Saúde não é um assunto resolvido em nosso país. Por essa razão, e também por ter números bastante interessantes, ela se torna um terreno fértil e atraente para as big techs, que já dão seus primeiros passos nesse sentido.
O poder disruptivo das big techs é proporcional ao seu tamanho. Elas podem ter um impacto notável em um cenário como o da Saúde, no qual o entendimento profundo do que é a jornada do cliente (ou melhor, do paciente) ainda está em construção e que, portanto, esbanja oportunidades de melhoria.
A junção desses dois mundos pode proporcionar uma experiência valiosíssima. Porém, para que ela seja efetivamente transformadora, deve ficar clara a diferença entre cidadão e consumidor.
Saúde não é um produto que se coloca na prateleira. Por mais que ela esteja amplamente comoditizada, é preciso resgatar a ideia de que Saúde é um direito. A Constituição Federal, em seu artigo 196, delibera que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Diante disso, qual é o papel do cliente na Saúde? Certamente é diferente de quem quer adquirir um bem de consumo qualquer. Quem está comprando uma geladeira ou uma televisão é um consumidor; na Saúde, esse consumidor é também cidadão, do começo ao fim da sua jornada de vida. Em tempos de ESG, até que ponto é seguro, lícito e ético deixar esse direito universal sob a ótica do consumo?
A tecnologia e a dimensão humana
Na Saúde, o cliente é o próprio doente ou um ente querido passando por uma enfermidade. Essa é outra característica extremamente sensível desse mercado, e é preciso compor uma união de forças para que uma empresa que venha a adentrá-lo não restrinja sua atuação a uma visão exclusivamente comercial, pelo bem do paciente e de todo o ecossistema do setor.
Em outras palavras: esse mercado não pode ser visto apenas pelo prisma da oportunidade de lucro. A estratégia que vai mobilizar qualquer player a atuar dentro desse mercado tem que estar orquestrada em prol dessa entrega principal, que é o cuidado expresso na experiência do paciente, da atenção primária aos cuidados paliativos.
O fortalecimento de um modelo de Saúde não é uma tarefa meramente regulatória. Ela envolve a visão de mundo de agentes como Estado, empresas privadas e profissionais da Saúde. É, talvez, o mercado onde todas as discussões recorrentes sobre “propósito” e “valores” se tornam mais urgentes, e não podem (ou, ao menos, não deveriam) se limitar ao discurso retórico.
As big techs têm força para ajudar nessa construção, sim, mas é preciso situar muito bem sua atuação.
Antes de sua entrada nesse mercado, algumas regulações precisam acontecer, como o estabelecimento claro de papéis e limites das big techs quanto ao real significado de “cuidado” no âmbito da Saúde. Grandes players precisam de espaço para jogar e é muito importante que as regras do jogo estejam claras, para não se tornarem o próprio jogo.
As big techs podem ajudar a repensar a cadeia de valor da Saúde, integrando serviços com o engajamento do paciente, influenciando comportamentos e maximizando a rede de atendimento do sistema como um todo, de forma horizontal e única.
De modo semelhante, ao se envolver diretamente, as grandes empresas precisam contribuir para a melhoria, adicionando uma força de execução capaz de coibir comportamentos ruins. Para isso, é indispensável encontrar o ponto de convergência entre lucro e cidadania. Se não contemplamos essa dimensão, acabamos por não realizar a entrega primordial da Saúde.
Os grandes players não podem concorrer nessa entrega de cidadania. A força das big techs deve ser usada a favor do que é premissa básica, o bem comum do sistema de Saúde. Ou seja, é preciso utilizar essa rede de funcionamento para ampliar o acesso, fazendo com que serviços de Saúde cheguem onde ainda não estão. Não se trata de fazer filantropia, e sim de facilitar o acesso à Saúde que uma gigante de tecnologia pode viabilizar.
Orquestrando um novo modelo
Por enquanto, não há notícia de nenhum movimento das big techs na área da Saúde que tenha consequências diretas no mercado brasileiro. Esses players podem aparecer a qualquer momento – oportunidades não faltam por aqui –, mas, antes disso, precisamos saber o que queremos desse mundo digital e o que significa ser protagonista e dono dos dados da Saúde.
Ter propriedade sobre os dados não significa tê-los centralizados em uma única base, e sim ter tecnologia e organização para estabelecer as regras do jogo para compartilhar e que, venha a empresa que vier, ela atue em um universo já pensado e desenhado em prol do bem comum. Essa tarefa é assunto de Estado, e o exemplo do sistema de Saúde dos Estados Unidos já comprova que a privatização pura e simples não resolve todos os desafios. São tantos os problemas que o sistema está em permanente risco de colapso.
Ou seja: as big techs sozinhas não vão solucionar todos os gargalos desse mercado. E nem deveriam. Saúde é indústria de altíssimo custo, e mesmo com todo seu potencial disruptivo, as gigantes de tecnologia correm risco de sérios prejuízos ao adentrar esse mercado. Além disso, a incorporação das inovações deve acontecer de modo que elas entrem como um elo da corrente, e não como sua razão de ser.
Já escrevi antes que a empatia deve ser elemento estratégico. Isso pode parecer algo etéreo, mas pode muito bem ser aplicado. Não é ético, nem tampouco viável, delegar decisões na Saúde ao aprendizado de máquina e à artificialidade dos algoritmos, uma vez que a entrega final da Saúde é questão cidadã e vital.
Isso reforça a necessidade de uma orquestração muito bem planejada para esse próximo movimento, com Estado e empresas articuladas repensando o modelo. E essa é uma ação que não pode tardar. Repensar o modelo da Saúde em meio à digitalização do cuidado é tema urgente para vários países, urgentíssimo no Brasil.
Hoje, empatia é business e cabe muito bem nas três letras do ESG.
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