*Por Sergio Lozinsky
O impacto das big techs há muito ultrapassou os limites do mercado de tecnologia. O poder, a receita e a influência obtidos por elas afetaram diversos setores econômicos e sociais. Portanto, dizer que tais empresas “se agigantaram” não é força de expressão: temos hoje corporações cujo valor de mercado é avaliado em trilhões – em julho de 2025, a NVidia tinha um valuation de US$ 4 trilhões, seguida por Microsoft (US$ 3,7 tri) e Apple (US$ 3,1 tri), e elas não são as únicas trilionárias.
Para se ter uma ideia da magnitude desses volumes, o valor da fabricante de chips, que ocupa o primeiro posto da lista, é superior a todo o mercado de ações do Canadá. Ou seja, estamos falando de empresas que têm poder econômico e influência grandes o suficiente para transformar um país. Em alguns, inclusive, a balança de poder chega a se inverter, com as leis nacionais sendo modificadas para acomodar as operações (e demandas) dessas gigantes estrangeiras.
O conceito de empresa que assume dimensões de nação não é novo: ele teve projeção mundial, pela primeira vez, ao aparecer no romance distópico 1984, escrito por George Orwell em 1949. A obra imaginava um mundo dividido em três megacorporações, operando como estados totalitários. Da década de 1990 em diante, essa premissa foi discutida em tons menos apocalípticos, mas com vários cientistas políticos, sociólogos e economistas – como Tony Judt e Robert Reich – apontando razões para preocupação sobre a crescente concentração de poder nas mãos de poucas organizações privadas.
Apesar do contexto necessário para o pensamento que desenvolverei na sequência, o objetivo deste texto não é discutir as implicações sociopolíticas da questão. Vamos nos voltar ao impacto sobre empresas menores e sobre o universo de negócios como um todo.
A competência exigida hoje para atuar em uma grande empresa é de um nível sem precedentes, graças à complexidade adquirida pelos negócios, com projetos cada vez mais difíceis de serem executados e inovações que balançam o que antes parecia estático. E se isso já é algo preocupante em grandes empresas, o que dizer das gigantes?
Nesse mundo complexo e repleto de ameaças de diversos tipos, os profissionais que ocupam posições de liderança precisam responder perguntas difíceis, não apenas sobre o rumo de seus negócios, mas até mesmo questões filosóficas sobre como viver melhor, qual o propósito da existência daquela organização e de quem nela trabalha, por exemplo. Mas ao menos uma parcela desses líderes parece estar preocupada – e ocupada – com apenas enriquecer e/ou ganhar mais poder.
Obviamente, há empresas cujo propósito é crescer à medida que provocam uma transformação positiva no mundo. Vemos isso especialmente naquelas que são voltadas para saúde, bem-estar e afins. Porém, geralmente são companhias sem escala, capacidade ou influência para interferir no cenário global de negócios, ainda que tenham uma intenção nobre.
Assim, as lideranças estão diante de um dilema moral: elas podem se expandir ainda mais, à custa da manutenção de um modelo de negócios que monopoliza a atenção do usuário final e que tem gerado questionamentos (inclusive no âmbito jurídico e legislativo no que diz respeito ao seu papel em crises sociais), ou podem assumir um papel mais transformador em que o lucro e o oligopólio não sejam os únicos objetivos no horizonte.
No judaísmo, há um preceito de que, quanto maior a sua capacidade de realizar algo, maior a sua responsabilidade. Em outras palavras: quem detém o poder deve fazer uso responsável dele. Isso vale não apenas para as empresas, mas também para investidores, pesquisadores e outros agentes envolvidos no universo dos negócios. Então, se as grandes empresas ainda não estão priorizando esse papel, talvez outros elementos do ecossistema precisem sobressair.
Essas empresas gigantes a que me refiro aqui podem deter grande poder, mas ainda estão longe de conseguir reduzir a capacidade de inovação de todo o restante do mercado. O fato é que o potencial de sempre trazer algo novo é um dos aspectos mais admiráveis da humanidade, especialmente quando a novidade vem para provocar rupturas que melhoram o mundo. Nunca tivemos tantos incentivos e tantas condições propícias para inovar quanto agora.
Vamos analisar o nosso mercado de TI: faz pouco mais de uma década que o desenvolvimento de aplicativos para tecnologia móvel parecia um manancial sem fim, com empresas movimentando milhões a partir da inovação na área. Hoje, porém, a inteligência artificial já parece capaz de oferecer o mesmo que os aplicativos ofereciam, possivelmente com maior nível de customização e a um custo mais razoável.
Não se trata de defender um ou outro modelo tecnológico, mas de encarar a natureza das mudanças: algo que parecia óbvio e provado no passado pode empalidecer no presente. O próprio fato de uma inovação provocar evolução tecnológica abre espaço para criações que antes não seriam possíveis.
Nos negócios, assim como nas artes, há sempre uma ou mais pessoas que lançam uma ideia absolutamente fora da curva e têm a coragem de levá-la adiante. Essas ideias precisam de condições para prosperar, o que inclui investimentos em educação e pesquisa, investidores decididos a apoiar novas iniciativas e sagacidade para garantir que não sejam cooptadas nem abafadas na origem.
Sempre vai haver quem desafie o status quo, assim como sempre vai existir quem utilize da estrutura vigente para trazer melhorias a um determinado ambiente. É isso que empresas menores precisam ter em mente, e são em objetivos dessa natureza, orientados pelo bem comum, que elas precisam mirar.
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é uma obra mais atual do que nunca. O personagem, um fidalgo que lê tantos livros de cavalaria que passa a agir e se ver como um cavaleiro, é frequentemente citado como exemplo de um romântico incurável, alguém que luta contra inimigos que não existem e vive em um tempo ultrapassado. Mas há um aspecto importante da história que é menos comentado: a obstinação em desafiar o que parece errado.
Os tempos atuais pedem ações mais quixotescas. Reconheço que está cada vez mais difícil acreditar em negócios orientados pelo bem comum ou em desenvolvimento coordenado de inovações por agentes que não detêm um capital estratosférico. Mas aqueles que acreditam em um potencial transformador, e dispõem de autocrítica e de bons interlocutores para ajudar a verificar que suas ideias são pertinentes, precisam transformar essa intenção em ação.
O ambiente de negócios atual não pede passividade. As ações precisam acontecer no âmbito individual e corporativo. É essencial, agora, encontrar caminhos para desenvolver soluções que tragam grandes benefícios para a humanidade sem que isso implique em danos significativos para uma parte dela. Lucro e ganhos pessoais são objetivos legítimos, mas não os únicos. Não é à toa que dizemos “ecossistema” para o cenário de negócios: trata-se de um sistema que só existe de forma harmônica se há renovação e equilíbrio.