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Os bloqueios e as pressões para a transformação digital no agronegócio

Modernizar a agricultura e a pecuária vai além de adotar soluções tecnológicas: é preciso entender a complexa relação entre as diferentes esferas que envolvem o setor

Enéas Rodrigues

A produção agrícola mundial vai ter que subir pelo menos 60% até 2050 para sustentar o crescimento populacional. A estimativa não é nova: foi apontada há 10 anos por instituições ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU). Mesmo assim, não estamos perto de conseguir esse resultado, e alguns entraves dificultam esse crescimento. A tecnologia certamente não é um deles.

Isso não quer dizer que não haja obstáculos para realizar uma autêntica transformação digital no agronegócio, mas sim que a tecnologia para otimizar a produção já existe – ela simplesmente não é adotada em larga escala, por diversas razões. 

Cabe aqui uma comparação com a tecnologia que habilita o trabalho remoto: ela já existia antes de a pandemia obrigar boa parte da população a adotar o teletrabalho. O confinamento imposto pelas políticas sanitárias apenas acelerou a derrubada das barreiras culturais. Aliado a isso, a utilização massiva das ferramentas de colaboração gerou uma massa crítica que permitiu seu aprimoramento pelos fabricantes.

O agro ainda não chegou a esse ponto, mas se vivermos um desabastecimento, ele certamente terá papel parecido. Não apenas isso, provavelmente derrubará boa parte das agendas ESG adotadas por empresas e governos. Em termos mais simples: quando a fome apertar, é grande a chance de esse salto acontecer. 

Mas precisamos realmente esperar um momento de forte necessidade para modernizar o setor?

Bases para a transformação

Em várias áreas do mundo, principalmente nas menos desenvolvidas economicamente, a infraestrutura é o principal obstáculo para a digitalização do agronegócio – especialmente a questão da conectividade. Há, em regiões bastante férteis da América Latina e da Ásia, grandes vazios de conexão, e não adianta ter as ferramentas mais modernas de IoT para coletar dados se esses não puderem ser transportados com velocidade e segurança.

Para além desse aspecto, há também a questão cultural. Muitos produtores, no Brasil e no mundo, estão obsoletos, mas entendem que o modelo deles é “bom”. Essa é uma realidade que encontramos principalmente em pequenas e médias propriedades. Some a isso o fato de que vários países na Europa contam com subsídios estatais, recurso que gera uma acomodação quanto ao desenvolvimento de tecnologia nesses países. Há, ainda, uma questão financeira: salvo algumas exceções, apenas os grandes players têm condições de aumentar o desenvolvimento tecnológico da produção. 

Na realidade do agronegócio, o pequeno e o médio produtores não podem ser descartados. Não se trata de dizer que a pequena produção é a “salvação da lavoura”, para recorrer a um trocadilho fácil. Se depender apenas dos grandes produtores, teremos um oligopólio ditando preços, normas e outros elementos importantes. Portanto, é preciso melhorar a performance dos menores, para garantir também um abastecimento descentralizado e com custos logísticos mais baixos. 

Cabe ao agente governamental agir para que esse desenvolvimento aconteça. E sim, isso deve ser política de Estado. Na verdade, alimentação deveria ser a preocupação de qualquer governo, ainda mais no Brasil, onde os produtos alimentícios são a principal fonte de geração de riqueza e de suprimentos. Podemos chegar a 40% da produção mundial em 2050, aponta o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Mas só iremos conseguir isso se tivermos um setor diversificado, bem estruturado e moderno.

Como afirmei anteriormente, a tecnologia pode evoluir a conectividade. Ela não precisa ser um ponto de ruptura. Uma vez que isso aconteça, devemos aprimorar a ciência de dados, pois ela possibilita integrar informações de clima, solo e manejo. É possível até mesmo aferir e gerenciar a qualidade das sementes, a dosagem de fertilizantes e defensivos agrícolas, e realizar um controle de pragas mais adequado à região. 

Tecnologicamente, tudo está à disposição do agronegócio. Cada fardão de algodão já tem um RFID, por exemplo. Ele sai monitorado da colheita no campo, e assim vai até a entrega para a indústria de transformação e toda a cadeia de valor. O mesmo vale para a pecuária: cada cabeça de gado de um grande produtor tem um controle sobre a vacina e a saúde do animal. 

Na verdade, o agro 4.0 está bastante alinhado à indústria 4.0, pois ambos dizem respeito à automação, gestão de dados e melhoria de processos. 

O modelo industrial se adaptou ao agro. Porém, tanto um como outro ainda penam contra os obstáculos culturais, com o agronegócio trazendo um cenário mais desafiante. 

Transformação estrutural antes da digital

Apesar desse cenário intrincado, acho seguro esperar a próxima revolução para breve. Se não vier pela tomada de consciência, virá pela pressão social e humanitária da fome, e pelos impactos trazidos pelo aquecimento global. 

Para que ela aconteça, independentemente das circunstâncias que a dispararem, será preciso haver uma união das pautas políticas, econômicas, sociais e também da iniciativa privada. É inviável, se não impossível, ignorar qualquer um desses contextos. Essa revolução precisará se pautar em políticas de sustentação, não apenas de produção. 

E não é apenas uma questão de aumentar o volume de produção. Se isso acontece de uma hora para outra, o valor das commodities cai, e o impacto no setor é grande. Mais uma razão para o alinhamento das pautas.

A cadeia de distribuição está mais engajada em um modelo de crescimento tecnológico avançado. Ao elevar o nível de inovação, esse setor pode acabar puxando as pontas da cadeia consigo. Essa cadeia passa por um movimento forte de fusões e principalmente aquisições, provocando seu afunilamento. E os resultados desse processo em breve aparecerão, provocando um aumento de eficiência operacional e, certamente, regulamentações a fim de evitar abusos econômicos.

Ainda assim, o progresso desse segmento pode ser determinante para reduzir o alto nível de perda envolvido no agronegócio – uma perda agravada por uma verdadeira crise logística. Em um resumo grosseiro, mas factível, podemos dizer que hoje a carência de contêineres e navios é mais evidente.

Enfim, o desafio do agronegócio vai muito além do discurso repetitivo sobre “inovação” que temos encontrado nas discussões sobre o tema. Mais que tecnologia, é preciso inovar nas políticas, na infraestrutura e na própria visão sobre a importância do setor.

Leia mais:

O papel da TI na definição de uma agenda ESG

BI é estratégia de negócio, não assunto técnico da TI

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