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Se é para transformar, que seja mais que uma digitalização

Após a evolução tecnológica acelerada pela pandemia, as empresas começam a atingir alguma maturidade digital, e isso aumenta a complexidade das relações com o cliente e exige uma evolução constante para se manter competitivo em um mercado no qual todos buscam inovações

Por Sergio Lozinsky

A transformação digital resolve problemas – e cria novas dores. Parece uma contradição, mas não é. E para que esse pensamento faça sentido para você também, preciso revisitar alguns conceitos que se tornaram confusos ou desgastados pelo uso.

Antes de mais nada: transformação digital não é sinônimo de transformação de negócios. Mais justo seria dizer que a primeira faz parte da segunda, ou seja, as novas tecnologias se relacionam diretamente com uma mudança maior, mas não se bastam.  Outra confusão comum é misturar a transformação digital com a digitalização, quando esta envolve inovação tecnológica, processos mais eficientes e ágeis, redução de custos e melhor experiência do cliente.

Resumindo: o digital, por si só, não transforma um negócio. Sua aplicação na criação de novos produtos ou serviços, na verticalização dos negócios ou na expansão das possibilidades self-service do cliente são exemplos de como o digital contribui na transformação da empresa.

Para falar em termos práticos, pense comigo: colocar autorização de pagamento no celular de um diretor para que ele faça aprovações a qualquer momento e em qualquer lugar é uma iniciativa de digitalização. A transformação digital, por sua vez, colocaria um algoritmo capaz de substituir a necessidade dessa função, valendo-se de recursos de inteligência artificial ou machine learning para efetuar essas aprovações de forma automática, e separando apenas casos excepcionais para serem analisados com critérios não automatizáveis (por enquanto).

A transformação digital também expande o universo da organização. Recentemente, tive contato com uma empresa que tem como core business a venda de produtos sofisticados na área de comunicação. A empresa desenvolveu a ideia de oferecer uma assinatura de software – uma aplicação que vai permitir aos seus clientes realizar uma espécie de administração self-service dos produtos adquiridos desse fornecedor. É um exemplo claro de incorporação de uma oferta, que só existe em razão das novas possibilidades tecnológicas, incluindo, no caso, processamento em nuvem.

Não é exagero dizer que essa mesma empresa está, na verdade, criando um tipo de startup interna para desenvolver um ou mais serviços, que vão trazer novas receitas e possivelmente fidelizar o cliente em relação ao core business.

Os primeiros passos da maturidade

A maturidade digital deveria nascer nos níveis mais estratégicos. Porém, muitas vezes fica confinada a uma área ou mesmo a uma pessoa, normalmente um profissional vindo do mundo digital e que tem o papel de tornar-se a força motora da companhia nesse processo de transformação. Não dá para dizer que esse é um erro, mas também não é suficiente. Conselho e acionistas precisam debater as ideias de maneira estruturada, independentemente de elas serem viáveis tecnicamente ou não.

Leia novamente a última frase. Sim, pensar no “inviável” pode trazer insights interessantes. Até porque esses profissionais não deveriam partir do que “é possível”, e sim do que “seria fantástico se tivéssemos como oferecer”.

Quando a Amazon criou a Amazon Go, uma loja sem atendentes ou caixas, ela apostou em um modelo que confrontava uma série de questões: tecnologia, confiança, a independência desejada pelo consumidor, segurança, variedade de oferta. E tudo isso sem interação humana. É cedo ainda para dizer que esse modelo vingou, ou mesmo que seja a tendência para o futuro, mas a iniciativa é um teste que certamente vai levar a um novo patamar de interação com o consumidor, elevando o grau de transformação digital.

E aqui eu volto à afirmação inicial do texto. Dificilmente uma tecnologia é capaz de resolver tudo: ao transformar, ela elimina desafios antigos, mas possivelmente cria novos problemas. Uma transformação digital hoje é capaz de agregar valor à experiência do cliente, podendo levar a um aumento significativo de receita. Mas certamente incorre em outra seara de preocupações, como o tratamento de dados sensíveis, os custos e demandas de ter o serviço ativo 24×7, as dificuldades de dialogar com o consumidor de comportamento mais analógico, entre outras.

Sempre que uma solução nova incrementa o negócio, criam-se novas questões a serem administradas – e, assim, outras novas soluções surgem em resposta aos desafios, em uma sequência de eventos que colocam à prova a missão de toda empresa: resolver problemas ou preencher necessidades. Foi assim que a sofisticação da concessão de crédito e da aprovação de pagamento evoluiu, muito por conta do requerimento de decidir em tempo real se era seguro vender para aquele consumidor online. Surgiram, então, ferramentas mais refinadas para solucionar o problema,  e cada vez mais sites de e-commerce integram essas ferramentas na sua arquitetura tecnológica.

Pode ser duro dizer, mas não há descanso na gestão de uma empresa. Você pode ter encerrado um ciclo de resolução de um grande volume de questões e, ao olhar para o concorrente, descobre que ele resolveu mais (ou melhor) que você. O “problema” da transformação digital bem-sucedida é que ela coloca a expectativa do seu cliente em um nível mais alto. Quem se lembra da época em que fazíamos check-in em aeroportos com bilhetes impressos (para os mais antigos, bilhetes manuscritos) provavelmente adora a possibilidade de resolver tudo, hoje, com tecnologia móvel ou terminais de autoatendimento. Mas já existem companhias aéreas investindo em check-in com reconhecimento facial. Ou seja: o que antes parecia satisfatório logo passa a ser pouco diante dos avanços. 

Em um debate sobre transformação que intermediei entre um banco e uma empresa de prestação de serviços de saúde, o primeiro começou contando como estava usando o WhatsApp, então uma novidade, para criar novos canais de comunicação e atendimento com seus clientes. Quando chegou a vez do representante da empresa de saúde, ele disse que não iria mais falar sobre o que tinha planejado, pois agora ele sabia que tinha um problema a resolver: se o banco estava oferecendo uma experiência melhor de atendimento, o setor dele logo teria que inventar algo semelhante, porque o usuário ficaria mais exigente.

Isso é elevar o patamar. As tecnologias fazem com que a experiência do cliente ocupe um território maior, não ficando mais restrita apenas ao próprio setor. O que uma empresa de outro setor oferece pode tornar-se mandatório para a sua empresa, principalmente se o grupo de clientes atingido for o mesmo.

Mas estou bastante otimista com a evolução digital das empresas brasileiras. O Brasil pode não ter a mesma velocidade e a mesma capacidade de investimento que outros países, mas não costuma ficar atrás por muito tempo. Esse movimento deve conduzir a uma nova TI, que lida com um ambiente mais sofisticado e um ecossistema de parceiros mais amplo, com ainda mais prestadores de serviços especializados. Aos poucos, a separação entre digital e TI vai convergir para uma estrutura unificada. Conforme isso acontecer, veremos a área de tecnologia expandir e aprofundar seu papel estratégico, e certamente novas transformações digitais virão a reboque.

Este artigo foi originalmente publicado na coluna Transformação Digital sem Travas, do The Shift.

Leia mais:

Até onde vai a digitalização e onde vira transformação digital?

Os diferenciais de quem transforma os negócios

artigo assinado por

Sergio Lozinsky

Sócio-fundador e CEO
Com mais de 30 anos na TI, é fundador da Lozinsky Consultoria. Autor de livros e inúmeros artigos sobre estratégia empresarial e tecnologia.
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