A autonomia é uma das principais tendências apontadas para o futuro do trabalho, mas nem todos parecem se sentir confortáveis com ela, ou mesmo desejá-la. Por isso, é imprescindível que cada profissional saiba se está apto a atuar de forma verdadeiramente autônoma
por Roberto Miranda Socorro
“Ser seu próprio chefe” é um clichê antigo, mas que ainda é repetido, empregado tanto no universo do empreendedorismo quanto no trabalho corporativo – sugerindo uma gestão de si mesmo que dispensa constante monitoramento do gestor. Porém, os tempos pandêmicos já mostraram que essa realidade não é tão fácil quanto dizem seus entusiastas.
A autogestão é celebrada, e com razão: saber gerir o próprio tempo nunca foi tarefa simples, mas tornou-se mais complexa à medida que o mundo acelerou em um ritmo que mais favorece a ansiedade que a produtividade. E, em um cenário onde o trabalho híbrido ou totalmente remoto é a regra, ela passou a ser necessária até mesmo para quem não a almejava.
Porém, nem todos estão aptos a viver essa liberdade com bons resultados. Roberto Miranda Socorro, consultor da Lozinsky com mais de 35 anos de experiência no mercado, vive essa realidade há décadas e, aqui, responde a cinco provocações sobre o futuro do trabalho na era do home office.
Comecemos pela pergunta mais óbvia: existem profissionais que, de fato, querem liberdade e autogestão?
Acho que sim, mas não são maioria. O requisito básico para a autogestão é ter consciência do que você consegue fazer dessa forma. Eu consigo produzir nesse modelo? Consigo organizar meu rendimento de forma que ele seja efetivo para o trabalho como um todo? Acho que pouca gente tem isso claro. Como disse Pitágoras, “quem não domina a si mesmo não encontra liberdade”. Esse ano e meio que tivemos de pandemia, e que vai se alongar por mais um tempo, já dá um bom parâmetro disso. Um segundo ponto é ter responsabilidade, que é uma decorrência da consciência. E digo responsabilidades em relação ao papel do profissional de acordo com as expectativas de quem lhe emprega e as suas próprias. O terceiro ponto é disciplina. Ser disciplinado não significa ter rotina, embora ela funcione para algumas pessoas, e, sim, ter disciplina em relação ao objetivo do trabalho. O quarto ponto é senso de urgência. O mundo do trabalho não funciona nas CNTP: vai acontecer alguma coisa no meio do caminho e, muitas vezes, você não vai ter a quem recorrer para te apoiar na tomada de decisão. Eu não tenho vergonha de tomar decisão errada, tenho vergonha de não tomar a decisão, de ficar paralisado. Esses quatro pontos são comportamentais, mas existe um quinto que é prático: o ferramental, que não falta hoje em dia.
O que é liberdade, falando profissionalmente?
Liberdade, nesse caso, é autonomia de vontade. É você ter consciência do seu livre-arbítrio, ou seja, poder fazer as escolhas certas. Quando você aplica esse arbítrio e consegue determinar suas ações, sua vida profissional fica mais fácil. Você se torna senhor das suas escolhas. E, claro, vem o ônus: não vá você culpar os outros pelo caminho que você escolheu! E essa liberdade inclui saber entender o ambiente onde você está. Se você entrou num ritmo produtivo em sua autogestão e vem alguém mais centralizador e te tira desse ritmo, você sai – da equipe ou mesmo da empresa. Da mesma forma, o cara que não consegue se autogerir possivelmente acaba “espirrando” se chega em uma equipe autônoma. Na verdade, um dos dois sempre vai sair — geralmente, o que tiver menor força política na organização.
Hoje em dia, quando falamos de autogestão estamos falando de home office. Quais são as peculiaridades que esse modelo traz que ainda não estão bem resolvidas?
Eu me irrito quando vejo textos como “cinco formas para trabalhar em home office”. Isso não existe. Cada um tem a sua forma e todas vão dar certo desde que tenham os requisitos que citei na primeira resposta. É onde pode ser criada uma “zona de conforto”, que, ao meu ver, está longe de ser algo a ser evitado. Para mim, zona de conforto traz a ideia de que você tem condições de trabalhar com qualidade, de produzir bem. E é preciso que a mentalidade do seu empregador esteja aberta para isso: de nada adianta ter ferramentas do século 21 se a mentalidade de gestão é do século 19. Além disso, existe esse ponto do “code switching”, a mudança de código. Explico: digamos que eu acorde, tome o café da manhã, tire o pijama, coloque uma camisa social e só aí eu me torne o “Roberto profissional”, como se o cara de camisa não fosse o mesmo cara que estava de pijama. Pelo amor de deus! Vou ser menos profissional por estar com uma camiseta dos Ramones? É essa camiseta que vai bloquear meus 35 anos de experiência? Esses códigos estão muito impregnados no ambiente de TI e é difícil quebrá-los.
O mundo dos profissionais de TI não está preparado para funcionar nesse modelo?
A área de TI é extremamente conservadora, ainda tem a mentalidade da era dos CPDs, dos caras isolados em espaços impenetráveis por quem era de fora. Até hoje, essa mentalidade predomina: a TI forma uma comunidade que gosta de ficar apartada, de se sentir um mundo estranho. Trabalhar não é o problema: é um pessoal que trabalha muito, inclusive nos finais de semana. Mas que não se mistura. Essa mentalidade está também no meio acadêmico, até mais forte que nas empresas. É um grupo que gosta de ter a pecha de nerd. Há um orgulho desse estereótipo e isso se perpetuou pelas lideranças de TI, tanto que existe uma diferença nas áreas que são lideradas por alguém que veio do negócio e não da própria TI: são equipes mais abertas.
Para quem almeja a gestão, são necessárias as mesmas habilidades para se autogerir? Ou há diferenças?
Vejo que existem necessidades a mais. Imagine que você tem um CIO que vai se reportar a um CFO ou COO — ou mesmo ao CEO, embora isso seja mais raro no Brasil. Esse CIO tem que estar pronto para estar liderado dessa forma e vai ser cobrado por agir dessa forma com a equipe dele. Para que isso funcione, ele precisa confiar na equipe dele e isso você não vê em muitos líderes. Um líder tem que focar em “o quê” e “quando” — e também no “quem”, para distribuir as tarefas adequadamente. Ele não tem que se preocupar com o “como”, mas é isso que a maioria dos líderes fazem, por não terem esse conceito de autogestão desenvolvido. É preciso ter confiança de que a equipe vai produzir “o quê” você pediu para “quando” você pediu — o modo que será feito importa menos. Porém, se esse gestor não confia na equipe, ele vai interferir no modo como o trabalho é feito, para que seja feito da maneira que ele imagina ser a melhor e que não necessariamente é aquela na qual a equipe rende.
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