O que os dados da terceira edição do estudo Jornada CIO sugerem sobre o papel da TI na Saúde? Do modelo remoto de trabalho à autonomia da área, há alguns aspectos que chamam a atenção
Por Aldir Rocha
No livro “Cem dias entre céu e mar”, Amyr Klink fala sobre como é possível atravessar oceanos com um barco de pequeno porte, enfrentando ondas de dez metros de altura. A saída, segundo ele, é tornar-se parte da onda, atravessando-a com inteligência. Se transportarmos o desafio para as navegações da TI no negócio, veremos que as ondas não só têm largas dimensões, como também mudam de forma rapidamente. O que dizer, então, dos capitães desse barco em franca correnteza? E se, ainda, observarmos não qualquer embarcação, mas especificamente a da tecnologia aplicada à Saúde?
Com o lançamento do report da terceira edição do estudo Jornada CIO, a motivação de fazer uma leitura do estudo com foco nos executivos de TI que atuam na Saúde foi natural. Afinal, vivo esse setor todos os dias e, por lá, as ondas têm potencial de afogar o mais experiente e bem intencionado dos profissionais. Assim, cheguei a alguns entendimentos que podem corroborar, complementar ou, ainda, contrapor-se aos dados gerais do estudo. É sobre eles que gostaria de falar.
Primeiramente, temos que entender que Saúde é uma área complexa. Seus desafios transcendem questões meramente técnicas. Para que o barco e seus tripulantes se tornem parte das ondas, como sugere Klink, é necessário ter clareza sobre qual é o destino da viagem marítima — Klink tinha um norte, tinha um destino claramente definido. Com uma empresa não é diferente, é preciso saber para onde se vai.
Na área da saúde, porém, conflitos de interesse e dilemas de negócio que remetem à sua sobrevivência se somam a desafios técnicos e são responsáveis, em grande medida, pela dificuldade dos gestores da área em divisar, com clareza, a direção a seguir. Isso porque, grosso modo, nem sempre é possível conciliar a sustentabilidade do negócio com a sua função social.
Considere os seguintes recortes: quando perguntados sobre qual o maior desafio na organização, mais de 30% dos entrevistados do estudo responderam “administrar a pressão e a urgência por inovação”, um dado que representa a expectativa depositada na TI. Além disso, 21% indicaram que outro grande desafio é atualizar a organização do ponto de vista tecnológico… Veja só a onda se formando, ainda mais quando somamos, a esses dados, as idiossincrasias do setor de saúde.
Um CIO na Saúde é pressionado a usar o máximo de tecnologia, como forma de enfrentar problemas de sinistralidade, inflação médica, glosas, altos custos e falta de uma visão integrada da jornada do paciente. Essas dificuldades atingem hospitais, operadoras, clínicas e demais elos do ecossistema de Saúde. Então, como um líder de TI pode navegar por tudo isso e, ao mesmo tempo, enfrentar a cobrança constante por resultados?
Será ele um capitão instruído a cruzar ondas gigantescas sem estar em posse dos instrumentos adequados para isso? Como orquestrar o uso da tecnologia num ambiente conservador e permeado por fortes questões políticas?
O CIO precisa estar na onda mas precisa também saber desviar do hype — só assim ele vai encontrar as oportunidades ocultas nas dificuldades que enfrenta. Deve tomar cuidado para não ser contaminado pelos dilemas que ele não consegue resolver. Em outras palavras, tem que estar no olho do furacão, mas não pode virar tempestade. Parece fácil falar, não?
Obviamente, os dilemas da Saúde podem gerar frustrações para o profissional de TI. Por isso, quem atua na área precisa não apenas gostar de resolver problemas, mas também fazer deles a matéria-prima do seu trabalho. Há tecnologia para as questões técnicas, mas as discussões são abrangentes, tornando o setor, muitas vezes, refém de interesses variados.
A Jornada CIO também revelou que cerca de 50% dos profissionais de TI relataram que precisam estar alinhados ao planejamento, mas também têm que responder de forma imediata às urgências — e aí está outro desafio: diferenciar adequadamente urgência e importância. Num ambiente de incerteza, a TI precisa ter momentos de pausa. Precisa parar para replanejar e reconstruir o horizonte. Afinal, planejamento estratégico é uma ferramenta de sobrevivência. Os momentos reservados a olhar para o todo permitem verificar se ainda estamos no caminho certo.
Outra dor relatada no estudo envolve o grau de autonomia dos líderes de TI na tomada de decisões: se os profissionais têm voz na escolha de soluções e serviços voltados à infraestrutura e segurança da informação, muitas vezes o mar não é tão tranquilo quando o assunto é a aquisição de tecnologia para o negócio.
Não podemos nos esquecer de que a TI não deve mesmo ter que definir, sozinha, as tecnologias que impactam o negócio. Quem tem que entregar eficiência operacional é o executivo daquela área. Para isso, esse líder precisa estar instrumentalizado pela TI, cujo papel, por sua vez, é oferecer as melhores opções para aumentar a eficiência e a eficácia da empresa.
Sim, o CIO precisa entender muito bem o business para saber quais são as melhores ferramentas, mas a TI funciona como um apoio estratégico. E é por isso mesmo que o líder de TI precisa ter voz nas grandes discussões — o que nem sempre ocorre, entre outros motivos, por falta de maturidade empresarial.
Um tópico que, na minha visão, parece superado é o do modelo de trabalho: se é presencial, remoto ou híbrido, esta é uma questão resolvida. Já vou explicar.
Segundo a pesquisa Jornada CIO, 80% dos entrevistados disseram que reuniões estratégicas devem ser predominantemente presenciais. Embora eu entenda o argumento por trás disso, posso descrever uma cena comum: o profissional desloca-se até o escritório para, ao sentar-se na cadeira, abrir a plataforma de videoconferência, juntando-se a algumas pessoas que também estão no presencial — cada qual isolada em seu respectivo cubículo de concreto — e muitas outras em casa. Você já viu isso acontecer também, não viu? Quem sabe, diversas vezes.
É claro que uma única circunstância não explica tudo. O meu ponto é que a atuação remota não é mais um dilema. Ou você conhece muitas pessoas ávidas por trabalhar novamente 100% do modelo presencial? Os profissionais se acostumaram a estar perto da família e não querem perder tempo no trânsito. Por outro lado, as empresas também estão economizando dinheiro.
Embora o senso comum indique que um hospital é um local de trabalho fixo, a pandemia ensinou que há profissionais (e áreas) que podem sim trabalhar de casa. Durante a crise sanitária, fizemos a implementação de um ERP 100% remotamente, com reuniões de 60 pessoas realizadas por videocall. Com a pandemia vencida, a empresa em questão começou a dosar o modelo, o que é natural. Atendo empresas que oficializaram a semana presencial de três dias, de terça a quinta, e deixaram segunda e sexta para o trabalho remoto. Há companhias, inclusive da área da Saúde, que devolveram prédios inteiros que eram ocupados pela TI, garantindo uma economia substancial.
Dependendo da cultura organizacional, o RH tem um problema para resolver, porque uma empresa, que pretende ter todos os colaboradores dentro de casa, limita o recrutamento. Afinal, quem quer trabalhar em uma organização que não flexibiliza? O fato é que o trabalho remoto exige maior organização e gestão estratégica por parte das lideranças. A ausência de direcionamento estruturado, ao time de profissionais, no caso do teletrabalho, não poderá, como acontece no presencial, ser compensada com aquele papo de improviso com o colaborador que se senta à mesa ao lado.
Voltando aos ensinamentos de Klink e aproveitando a deixa acima, o improviso não é a melhor forma de atravessar oceanos. Somente uma rede de embarcações bem articulada pode superar os desafios das tormentas do mercado e garantir uma navegação tranquila. Ironicamente e com a permissão da licença poética, é possível dizer que é dessas redes bem articuladas de embarcações que se formarão as grandes ondas do futuro.