Antes de falar em disrupção em TI, que tal olharmos para o básico bem feito?

Investir tempo e dinheiro em ações estruturantes não é tão “sexy” quanto buscar a inovação, mas são muitas as ocasiões em que a solução está em fazer a lição de casa

Imagine a situação: você tem um voo internacional com sua família. Segue todas as orientações preparatórias da companhia aérea: faz o check-in antecipado, chega três horas antes do embarque no aeroporto. Só lhe falta imprimir o cartão de embarque e a etiqueta das bagagens. Tudo corriqueiro e sem complicações, certo? 

No meu caso, não foi nada disso. Como havia conexão e o segundo voo não era pela mesma companhia da primeira, o processo não funcionou como esperado. A troca de companhias não era suportada pelos sistemas, e fez com que fôssemos encaminhados para uma fila que, ingenuamente acreditei, era para casos excepcionais. A fila era enorme, e encará-la aparentemente era a regra, e não a exceção. Durante o atendimento, bastante moroso, entendi que os sistemas das linhas aéreas parceiras não são integrados – consultor sempre fazendo diagnóstico de tudo. Como se não bastasse, na chegada ficamos esperamos as malas até constatar que elas não vieram, e só fomos recebê-las em casa no dia seguinte.

Exceções existem em qualquer processo, e é difícil se antecipar a todas. Porém, é duro perceber que, mesmo com tantas conversas sobre jornada do cliente, customer success, tecnologia resolvendo problemas e temas afins, ainda estamos distantes em termos de garantir eficiência e satisfação na relação com nossos públicos-alvo.

Não duvido que as companhias aéreas do meu caso particular tenham investido altas somas para ter soluções automatizadas que, em tese, facilitariam a vida de quem usasse seus serviços. Mas o incidente relatado é emblemático para uma situação que se repete em empresas de todos os segmentos: as ferramentas tecnológicas, de modo geral, só funcionam para o que chamamos de “caminho feliz”, ou seja, o processo onde nenhum atrito acontece.

Se não é possível garantir o “feijão com arroz”, como oferecer lagosta e caviar? A verdade é que sobram empresas que vivem a alardear seus investimentos em inovação, disrupção, até em “revolução”, mas que muitas vezes não são capazes de garantir uma experiência minimamente positiva na jornada mais essencial do cliente.

Engatinhar antes de andar

Solucionar as questões pertinentes à operação é a primeira medida que uma companhia pode tomar para agregar valor a sua oferta. Ou, em outros termos: antes de ficar inventando, é preciso conhecer intimamente a própria cadeia de valor e sua realidade na prática.

Aliás, como o objetivo de toda empresa é ter lucro, claro que aumentar a receita de forma imediatista é importante, e alardear novidades faz parte, mas o mais provável é que a organização esteja perdendo muito dinheiro com ineficiências como erros desnecessários, esperas inaceitáveis e ações repetitivas. E como garantir lucro, se pouquíssimas empresas têm real controle de seus custos e de sua eficiência a ponto de fazer uma projeção mais verossímil de seus ganhos a longo prazo?

Aliás, a pressão por resultados imediatistas tende a sacrificar visões de futuro. Vale a mesma lógica (altamente questionável) da dinâmica eleitoral: o mandatário atual investe em obras que podem ajudá-lo a ganhar a reeleição, mas deixa de lado aquelas de resultado mais longo, como saneamento básico e infraestrutura.

Ações estruturantes não têm efeitos imediatos, mas são imprescindíveis, pois garantem escalabilidade e são mais duradouras. Permitem, ainda, que a inovação aconteça sob bases sólidas. Porém, atualmente muitos acionistas e executivos tendem a se concentrar demasiadamente no agora. Claro: retorno imediato impressiona nos relatórios de resultados e valoriza os bônus anuais..

O fácil não é o certo

Essa percepção equivocada de valor é mais comum do que se gostaria de admitir, e tem raízes em aspectos culturais e de governança. “Fazer certo” demanda mais planejamento e um pensamento mais “pé no chão”, dois itens que têm sido desvalorizados dos manuais atuais de administração.

 Além disso, temos hoje uma cultura onde os profissionais são mais orientados à tarefa que ao resultado. Enquanto a tarefa pode ser algo meramente operacional e sem valor agregado real, o resultado é aquilo que efetivamente entrega algo que não só é valioso à empresa como também é conectado diretamente ao seu propósito.

Vale lembrar, inclusive, que as empresas podem ter seu nome de fantasia, mas legalmente elas são denominadas por sua razão social, ou seja, pelo propósito que as faz existir. Por isso ela não pode ser orientada apenas a partir de tarefas ou de resultados de curto prazo e bonificações para executivos.

A história está cheia de casos em que fundadores foram demitidos das organizações que criaram, pois sua visão de futuro não garantia lucros imediatos. Mas também não é raro casos em que os mesmos fundadores foram chamados de volta para recolocar a companhia nos trilhos. Por isso, fazer o básico bem-feito e se orientar pelo propósito do negócio são premissas intimamente interligadas.

 O desafio da lógica

Como eu disse antes, o modelo atual é de pressão por retornos imediatos. Isso é notório, mas não imutável. O básico bem-feito é um dos (muitos) pilares nos quais podemos alicerçar uma perenidade. Sim, há empresas que funcionam o tempo todo “no susto”, adotando um modelo extremamente reativo, com resultados oscilantes. E há alguns segmentos que são essencialmente lucrativos, de modo que seus modelos de negócio permitem que o dinheiro continue entrando, mesmo com as coisas sendo feitas em um modo quase kamikaze.

A grande pergunta é até quando esse “estilo” de gestão vale a pena. Crescer a qualquer custo pode ser muito oneroso. Empresas que não tem noção de sua eficiência e de seu custo podem se descobrir muito fragilizadas.

 Em música, a expressão “cozinha” se refere à dobradinha de baixo e bateria, instrumentos responsáveis principalmente por definir o ritmo da execução. Em estilos marcadamente rítmicos, como o rock e o jazz, existe a ideia de que uma cozinha bem-feita é essencial, pois é o que garante que todos os espaços harmônicos vão ser preenchidos, seja a melodia qual for, e um incrível solo de guitarra surge de forma muito mais natural.

 A analogia vale para o mundo corporativo. Tem muita empresa que se propõe a tocar jazz, mas a cozinha está punk. Os gestores – especialmente os de TI precisam repensar (e, em alguns casos, aprender mesmo) as formas de gestão, pois não são poucos os que ignoram o quão frágil é o solo onde estão se apoiando.

Não custa lembrar que “básico” e “essencial” são sinônimos. Ou seja, antes de ser disruptivo, é preciso voltar à essência. Vamos garantir o básico. Ninguém tem nada a perder com isso.

artigo assinado por

Ricardo Stucchi

Sócio-consultor
Mais de 20 anos de atuação na área de TI. Trabalha intensamente para dar respostas a problemas complexos dos clientes.
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