Quando os valores de uma empresa não são consistentes com as suas práticas

Se uma empresa começa a “flexibilizar” seus valores, isso pode levar à uma degradação irreversível de sua missão e de suas responsabilidades

 *Por Sergio Lozinsky

Assim como as pessoas, empresas devem ter um propósito. E é este propósito que vai nortear a missão e os valores da organização, determinando o seu fazer em todas as esferas. Contudo, tal qual as pessoas, as instituições podem cair em contradição e até mesmo trair aquilo que juravam ser mais valioso para elas.

Pressupõe-se que uma empresa de sucesso deve contribuir para a sociedade de alguma forma.  Ao menos em tese, as empresas existem para resolver um problema, agregar valor e gerar riqueza não apenas para si próprias e seus acionistas, mas também para a sociedade. Essas são questões que devem estar contempladas na própria concepção estratégica de como o negócio vai atuar.

Normalmente, essa concepção nasce de alguma crença relevante dos fundadores. Ela se baseia em algo que aquele(s) empreendedor(es) acredita(m) ser benéfico para a humanidade, ou ao menos para uma parte da sociedade. A empresa será, então, um agente transformador rumo a essa realidade desejada.

Tudo isso é muito nobre e louvável enquanto ideal. Será ainda mais se for colocado em prática, mas essa não é uma realidade comum a todas as empresas. Garantir que esse propósito seja cumprido e que os valores sejam mantidos exige dedicação e consistência. E é nesse ponto que as coisas começam a ficar pantanosas.

Corrosão sutil

Manter a consistência de processos já é bastante difícil. Com valores, é ainda mais complexo, e isso se dá desde os primeiros anos de existência. Afinal, nesse momento inicial, a maioria das empresas encontra-se em “modo sobrevivência” – ou seja, está testando ideias e sendo colocada à prova, podendo se deparar com situações em que a opção pelo crescimento pode ser não apenas uma decisão executiva, mas também moral.

Mesmo que atravesse essa fase com aderência aos seus valores, a empresa nessa posição vai encontrar novas dificuldades para mantê-los quando começar a incorporar novos colaboradores que não necessariamente conhecem ou compartilham do mesmo propósito.

À medida que uma empresa cresce, o núcleo inicial de líderes e colaboradores fica menor, por diferentes razões. Aqueles que são contratados ou se associam a partir daí usualmente não estão buscando os mesmos objetivos que direcionaram a criação da empresa, até porque quem os recruta provavelmente também não vivenciou a prática dos valores que estiveram presentes na fundação do negócio. A mudança de uma empresa “de dono ou donos” para outra de viés mais corporativo sempre impacta os objetivos individuais, que acabam por se sobrepor aos objetivos empresariais. Além disso, uma empresa longeva vai lidar com mudanças geracionais, fusões e outras situações que certamente vão levar ao questionamento, ou mesmo o esquecimento, dos valores originais.

Quando situações assim acontecem, a agenda pessoal tende a se sobrepor à empresarial. Pior ainda: isso costuma ocorrer de forma velada. É algo que normalmente começa como uma “flexibilização” dos valores em nome de um objetivo sedutor, mas pode descambar para uma cumplicidade tácita em que muitos fazem coisas contrárias ao que a empresa defende. Enquanto isso, outros tantos fazem de conta que não estão vendo. É o que se chama de “fazer política”, algo que se já é prejudicial na esfera governamental, fica ainda pior em um ambiente onde a eficiência e a competência são vitais para que a organização tenha sucesso.

Tudo isso acontece dentro de um ambiente e de uma estrutura organizacional que vai se transformando conforme novos perfis ganham autoridade e espaço para atuar. Essa diluição de valores toma corpo em questões políticas internas ou em preferências manifestadas por quem toma decisões, que passam, por exemplo, a escolher de quem comprar ou para quem vender baseados em critérios obscuros.

Novamente, cabe entender que esse não é um problema exclusivamente corporativo, mas humano. Acontece no âmbito individual e também se dissemina em organizações “menos” empresariais, como clubes, organizações filantrópicas, ONGs e outros. Mas quando estamos falando de empresas, há consequências muito particulares que elas terão de enfrentar.

Guardiã de valores

Há ocorrências em que a empresa comete uma traição inequívoca de seus valores: um executivo aceitando suborno, ou uma ação de vendas que prejudica seus clientes. Quando isso acontece, o grau de tolerância em relação ao ocorrido tem que ser baixo, senão zero. Se isso se dá nos níveis de direção e gestão é porque a doença já se instalou de forma irrecuperável na empresa. Em casos assim, há apenas duas soluções possíveis: levar o negócio ao seu fim, ou assegurar que ele seja adquirido por uma companhia com valores mais sólidos. Neste último caso, é essencial que nenhum dos indivíduos presentes na distorção anterior faça parte do novo momento.

Essas soluções podem soar extremas, mas são necessárias. Sem esta postura, há chance de um cenário ainda pior acontecer, sempre sob mil desculpas. Pode-se dizer que a empresa é grande demais para quebrar ou que se trata de um negócio que gera muitos empregos, entre outras justificativas.  Na prática, a tolerância às más práticas acaba dando carta branca a quem comete esses malfeitos, perpetuando e aprofundando esse ciclo vicioso e prejudicando o mercado de forma mais abrangente, afastando ou dificultando a participação de empreendedores que poderiam agregar maior valor à sociedade.

Para evitar que uma gestão seja mais tolerante do que deveria com as agendas pessoais, a governança é fundamental. Para tanto, ela precisa de embaixadores que atuem como guardiões da missão e dos valores corporativos. As pessoas escolhidas para essas posições devem saber se impor, e mais importante, reger o cumprimento das premissas éticas da organização. Essa atuação deve ser tão capilarizada quanto possível para garantir que a lisura seja mantida em todas as etapas da cadeia de valor.

O maior obstáculo que esses embaixadores enfrentarão será a proteção mútua que se instala entre esses colaboradores menos éticos. Essa proteção é reforçada pelo silêncio daqueles que, se não são “parceiros do crime”, fazem-se cúmplices pelo seu silêncio. Isso acontece porque, uma vez que se cria tolerância a atitudes ilegais ou mesmo imorais em nome de uma suposta “tranquilidade” ou mesmo “segurança”, é porque já se abriu um flanco que dificilmente será fechado.

Consciência de longo prazo

Mesmo as empresas mais zelosas de seus valores vão incorrer em algum grau de contradição entre discurso e prática. Isso é inevitável. Porém, muitas vezes essa contradição não resulta em algo insidioso.

Pensemos em um exemplo hipotético; é possível questionar uma grande indústria alimentícia sobre sua produção de ultraprocessados. Faz sentido uma empresa desse tipo falar em promoção de bem-estar? Talvez essa não seja a melhor abordagem para manifestar publicamente sua missão, mas pode ser que essa mesma empresa tenha resolvido um problema de distribuição e acesso à comida que muitas regiões não tinham antes. Ou seja, ela de fato endereçou e resolveu um problema.

Por questões como essa, o tema não é simples e exige reflexão constante. O que os executivos não podem fazer é se omitir nessa tarefa. Afinal, herdamos um mundo (e um mercado) imperfeito, e temos a obrigação de resgatar erros cometidos no passado e criar um presente melhor.

Empresas e instituições são apenas ideias: as pessoas é que definem a estratégia, criam os processos de gestão e de operação e executam as atividades. São elas que dão uma percepção de concretude à organização. Uma liderança que realmente queira fazer diferença no mundo vai precisar ser muito criteriosa na escolha dessas pessoas. É preciso seguir acompanhando e verificando a aderência dos profissionais aos valores que um dia serviram como pilares para construir a organização.

artigo assinado por

Sergio Lozinsky

Sócio-fundador e CEO
Com mais de 30 anos na TI, é fundador da Lozinsky Consultoria. Autor de livros e inúmeros artigos sobre estratégia empresarial e tecnologia.
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